DESENHO: A DIFERENÇA ENTRE “COPIAR”, “COLAR” E “CRIAR”
O que possibilita participação ativa na esfera da arte é o saber das linguagens. O conhecimento dos códigos constitutivos das categorias artísticas permite uma apreciação qualificada; mas há sempre algo que escapa, mesmo ao melhor crítico, ainda ao diletante mais perspicaz: o interior da técnica. Claro, saber “ler” um desenho a carvão não é o mesmo que saber “desenhar” com este material – o expectador de um desenho estará sempre “de fora”, como se visse um espelho da coisa, com o qual não pudesse interagir.
O domínio da dimensão das linguagens é, por isso mesmo, um pesadelo para o artista: até porque, indiferente daquilo que se produza, o embate com os materiais será uma constante em sua vida. Como venho dizendo, a técnica não é a arte; a técnica é o que possibilita a expressão de significados – uma vez unidos ambos, tem-se a obra artística ou solução plástica de representação.
As leis que regem a forma, se aplicadas mecanicamente perdem a dimensão estética – podem ser utilizadas para uma sinalização urbana mais efetiva, por exemplo. Mas a estética é muito mais que isso. Um desenho cujo objetivo é copiar outro desenho, ou fotografia– em que pese a esfera (cri)ativa que possa haver na cópia – sem preocupações em realizar uma “transcriação” da forma (segundo conceito de Haroldo de Campos), limita-se a uma réplica, cujo valor está no aprendizado técnico. Essa mesma técnica aprendida, uma vez introjetada pelo desenhista, torna-se recurso expressivo em suas mãos, capaz de gerar novas obras e explorar novos significados. Do contrário, o desenho se torna produto; é reproduzido como uma página de xerox.
Os significados são ocultos pela moeda gasta dos signos, que os vestem. Desmascarar as convenções que encobrem o “real”, os convencionalismos que se fazem passar por substitutivos dos significados do mundo é tarefa fundamental do artista, sobretudo em nossa sociedade, onde tomamos a coisa pelo vazio de sua aparência. Sabemos que o fundo das coisas (sua suposta “essência” para além da substância), é afinal um deserto.
As convenções, no entanto, encobrem de forma inevitável certas (senão todas as) dimensões da vida e devem ser rearticuladas: a vestimenta com que a linguagem organiza a experiência dos elementos sensíveis do mundo precisa ser trocada permanentemente. A arte, enfim, possui essa importância crucial de descortinar o véu de invisibilidade com que as convenções vestem os eventos.
É claro que o desenhista dedicado ao processo da cópia tem enorme importância, inclusive histórica. Que seria das gravuras dos mestres do passado sem seus gravadores assistentes – o pessoal da oficina de Gravura dedicado a solucionar os difíceis problemas da gravação das tiragens? Ou dos pintores, sem assistentes que executassem os procedimentos sistemáticos da pintura? Têm eles a mesma importância que um tradutor em relação ao poeta cuja obra traduz.
Não é certamente esse o vetor que vertebra o “Hiper-Realismo Contemporâneo” a que vimos aludindo nos últimos artigos. Os conteúdos da arte obviamente ultrapassam as regras de seu ofício. As representações hiper-realistas atuais, junto de outras fundamentais características definidoras deste tipo de produção, não se limitam à reprodução. Isso seria transformar o meio em finalidade.
O objeto desta “escola” (se podemos chamar assim) não são os elementos da linguagem visual; nela, a importância do mimetismo é definida mediante os conteúdo (psíquicos, sociais, políticos) enunciados na obra. Tanto é que a grande maioria dos artistas filiados ao Hiper-realismo Contemporâneo vale-se de retroprojetores, depois do que pintam por sobre o traçado do desenho. Não se trata de mera demonstração de virtuosismo, por vezes duvidoso, como boa parte de certo hiper-realismo praticado hoje no Brasil…
Os hiper-realistas contemporâneos sabem desenhar, sem dúvida alguma. No mundo da aridez pós-moderna, da assepsia das instalações e da arte conceitual, o Hiper-Realismo Contemporâneo vem trazer um alívio e novo interesse para a visão. Porém, só o faz porque disputa, enquanto arte, o campo dos significados, rearticulando as linguagens e tensionando a própria arte e os artistas.
imagem da capa | RAN ORTNER (óleo sobre tela)
COMPARTILHADO DO BLOGGER DE GUSTAVOT DIAZ
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Gustavot Diaz
Pintor, desenhista e escritor diletante. Formei-me em Artes Visuais (UDESC , 2006), mas o ensinamento técnico, artesanal, do métier me foi dado pelo mestre Moacyr Vidal Ramos, na adolescência, por professores, amigos e muitas horas de silencioso e solitário exercício nos atelieres que tive. Creio no “saber fazer” como um catalisador da comunicação artística – um poderoso canal de mediação.Essa parece estar sendo também hoje a preocupação de muitos artistas pelo mundo, interessados visceralmente mais com sua produção do que pelos ditames da Academia. Desde 2005 ministro cursos e Oficinas de Desenho, especialmente Anatomia Artística com modelo vivo.