domingo, 13 de abril de 2014

Uiara Bartira, a inquieta

André Rodrigues/Gazeta do Povo / Uiara Bartira em frente a uma das pinturas de Ecce Mondo, que estará em cartaz no Solar do Rosário: “detesto posar, não sou fotogênica”Uiara Bartira em frente a uma das pinturas de Ecce Mondo, que estará em cartaz no Solar do Rosário: “detesto posar, não sou fotogênica”
A artista plástica inaugura hoje, no Solar do Rosário, mostra com 20 obras recentes e lança o livro Ecce Mondo, que retrata seu envolvimento com a pintura
Compartilhado do caderno G da Gazeta do Povo / Publicado em 13/04/2014 | 

Já formada pela Escola de Belas Artes do Paraná e chegando na casa dos 30 anos, a artista plástica Uiara Bartira se viu em meio a uma crise: seguiria ou não o caminho das artes? Um dia, choramingando ao telefone com a mãe, Cléo, sobre a situação, ouviu dela a frase que tomou como mantra para toda a vida: “minha filha, pare de chorar. Coloque este choro na sua obra, porque o artista não é aquele que quer ser, é aquele que é.” Uiara nunca mais esqueceu as palavras, e lá se vão mais de 30 anos de arte.
A artista, que vem emendando um projeto no outro, lança hoje, às 11 horas, no Solar do Rosário, uma nova exposição e livro, Ecce Mondo, apenas seis meses depois de abrir uma grande retrospectiva no Museu de Arte Contemporânea (MAC).
Exposição
Ecce Mondo
Solar do Rosário (R. Duque de Caxias, 4 – Largo da Ordem), (41) 3225-6232. Exposição com 20 obras de Uiara Bartira, mais lançamento de livro homônimo. Inauguração hoje, às 11 horas. A mostra pode ser visitada de segunda a sexta-feira, das 10 horas às 19h30. Sábados e domingos, das 10 às 13 horas. Entrada franca. O livro Ecce Mondo terá distribuição gratuita em escolas da rede pública municipal, e estará à venda a R$ 50 na livraria do Solar do Rosário e na Livraria da Vila, no Shopping Pátio Batel
“Sempre trabalhei muito, às vezes fico pensando que não tenho muito tempo para outras coisas. Mas foi a arte que me escolheu, não fui eu quem a escolhi, não. Tenho certeza disso.”
Uiara Bartira, artista plástica.
Na nova mostra, estão reunidas cerca de 20 obras realizadas de 2010 para cá, todas elas pinturas e desenhos, o que foge da área que consagrou Uiara, a gravura. Seu nome na técnica é tão representativo que foi ela a organizadora do Museu da Gravura de Curitiba. No novo livro, além das imagens dos trabalhos, há ainda um texto da artista refletindo sobre a cor, o movimento e as formas na pintura.
“Todo o artista ama a pintura. A gravura, a escultura, são técnicas que sempre tiveram um dono, alguém a criou. Já a pintura não, então é um desafio para criar, é algo de paixão mesmo”, teorizou a artista enquanto posava para as fotografias da reportagem, em frente de uma enorme tela que integra a mostra. “Eu detesto fotos! Quando era moça já detestava, imagina agora.”
Uiara, que começou sua carreira na década de 1980, explica que sua relação com a pintura se dá principalmente por meio do estudo da cor, e de como ela evolui. “Para mim, foi um desafio”, conta a artista. Além da tela de grande dimensão, também há desenhos de figuras, mas não representativas. “É algo meio surrealista, mas não vou definir, porque não sei direito ainda. Mas trabalhei a vida toda para isso, para que as imagens não sejam apenas uma representação. Com a invenção da fotografia, a pintura ganhou liberdade, e a arte virtual hoje também cria outra situação para a pintura.”
“Workaholic”
Uiara é o tipo de pessoa que não para: quando não está criando obras novas em seu ateliê montado na casa da filha (onde ela acaba trabalhando junto com os netos, que pegaram gosto pela área), está organizando novos projetos ou estudando. Acabou de concluir uma especialização em Fotografia, na Universidade Tuiuti e, no ano passado, ficou meses envolvida na abertura da mostra Conciliar, em outubro, no Museu de Arte Contemporânea, que também teve catálogo homônimo.
Para reunir as 180 obras da exposição (que continua em cartaz no MAC até o final desse mês), ela precisou rever boa parte de seu acervo, o que gerou uma compilação inédita, mas também uma baita alergia. “Fui mexer em coisas de 15 anos atrás sem luva, nem máscara. Peguei uma bactéria e fiquei muito mal.”
Um mês depois, ela doou 41 obras, entre xilogravuras (madeira) e gravuras em metal para a Pinacoteca de São Paulo. Os trabalhos foram escolhidos pelo diretor do espaço, Ivo Mesquita, e pelo curador de gravuras, Carlos Martins. A negociação, que levou cerca de um ano, aumentou o número de espaços que têm no acervo obras da artista, como o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e o Oscar Niemeyer. “Eu sempre trabalhei muito. Às vezes fico pensando: eu só trabalhei! Não tenho muito tempo para outras coisas”, diz a artista, que desde criança se envolveu com a arte, um “olhar mais interno”, como prefere dizer.
Estudou piano por oito anos, o que, segundo ela, lhe deu uma noção enorme de espacialidade, além da disciplina. No colégio interno, as freiras pediam para as alunas desenharem partituras musicais com nanquim. “Não tinha educação artística nessa época, mas tive esse privilégio de sempre ter arte na escola.”
Em casa, a atmosfera era a mesma: uma tia musicista vivia com a família, e ela lembra como o lar se transformava em uma grande oficina, com lantejoula para todos os lados, quando bordavam máscaras para o Carnaval. “Sempre fui incentivada, não podia dar em outra coisa. Mas foi a arte que me escolheu, e não eu. Tenho certeza.”

A mulher que viveu para contar

Reprodução / A “Polaca” e a tela pintada em 1935: quadro original foi destruído e um novo feito de memória. Ela trajava vermelho quando modelo e pintor se conheceramA “Polaca” e a tela pintada em 1935: quadro original foi destruído e um novo feito de memória. Ela trajava vermelho quando modelo e pintor se conhecera
Documentário A Polaca, de Fernando Severo, recupera a história de Hedwiges Mizerkowski, 104 anos. Na juventude, Iadja foi modelo de uma das telas mais importantes do pintor Guido Viaro. Apaixonados, separaram-se por “razões sobrenaturais”
Compartilhado Caderno G Gazeta do Povo / Publicado em 17/10/2013 | 
Uma visita ao Museu Oscar Niemeyer, o MON, em 2007, alterou em definitivo a rotina da aposentada da Rede Ferroviária Federal Hedwiges Mizerkowski, então com 98 anos. Moradora anônima do bairro Rebouças, fora até lá conferir uma retrospectiva do pintor italiano Guido Viaro, radicado em Curitiba no final da década de 1920. Mais do que isso – queria tirar uma cisma. Interessava-lhe ver as telas do nome mais importante do modernismo paranaense, mas buscava uma obra em particular – A Polaca, datada de 1935.
Diante da pintura, não teve dúvidas: a figura retratada – uma moça bela, de cabelos muito loiros, olhos azuis cristalinos e nariz aristocrático – era de fato ela, Hedwiges. Nunca tinha visto a pintura. Nem sequer sabia de sua existência, mas lembrava, com todas as tintas, das semanas em que posara para Viaro num pequeno sótão do Centro de Curitiba e do flerte que viveram.
Reprodução
Reprodução / Hedwiges na festa de 102 anos – registrada pelas filmagensAmpliar imagem
Hedwiges na festa de 102 anos – registrada pelas filmagens
Cinema
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Tinham se passado mais de 60 anos desde aqueles dias, e não poucos duvidaram de que fosse possível saber de quem se tratava a guria. Difícil que estivesse viva. Mas os olhos azuis de Hedwiges não deixam mentir. Não demorou muito para que a história algo surreal chegasse aos ouvidos dos herdeiros de Viaro, aos pesquisadores de arte, à imprensa e ao cineasta Fernando Severo, que contou a história no documentário A Polaca, em cartaz no Cine Guarani desde a última sexta-feira (veja o serviço completo no Guia Gazeta do Povo).
A origem
“Por que você não faz um filme sobre ela?”, provocou a crítica de arte Maria José Justino, autoridade na obra de Viaro, e na tela A Polaca em particular. O quadro pertence ao acervo do Museu Guido Viaro. Fernando – que já tinha se aventurado pelo gênero documentário no premiado O Mundo Perdido de Kozák (1988), sobre o fotógrafo e indigenista checo Vladimir Kozák – tinha faro o bastante para saber do potencial da trama. E experiência de sobra para nutrir dúvidas. Hedwiges era uma iniciante – arrisca a mais tardia do mundo. Temia que uma mulher centenária não se desse bem com as câmeras, quanto mais para expor um segredo guardado desde os tempos em que Getúlio Vargas ainda era um jovem caudilho. Enganou-se.
“A expressão dramática me impressionou. Ela não tem constrangimento. Tem comportamento de estrela”, comenta o cineasta, sobre o desempenho de Hedwiges, com folga o maior trunfo do documentário de 70 minutos. A “amada imortal” de Guido Viaro encanta a plateia a cada sequência, em especial aquela em que fala com um retrato do pintor. Aplausos, igualmente, para o momento em que faz uma revelação sobre o homem com o qual se casou, anos depois. E para a cena final, cujo teor merece ser guardado. “Ela é abusada”, brinca Severo.
A tarefa do cineasta é o que se chama de falsamente fácil. A maioria das filmagens foram feitas quando a agora sua modelo tinha 102 anos e alguns sinais de surdez. Além de dar conta de uma atriz com um século de serviços prestados à vida discreta, tinha de traduzir a figura de Guido Viaro, um gigante das artes, mas que está longe de ser popular junto ao grande público.
O recurso encontrado pelo diretor serviu como luva: ele ladeia cada passo da cronologia do pintor italiano com os da curitibana de origem polonesa, até chegar ao breve momento em que se encontram, apaixonam-se e vão cada um para um lado, no melhor estilo “amor impossível” – um Titanic da Rua Brasílio Itiberê. O resto é quase uma eternidade. Hedwiges e Guido nunca mais se encontraram na cidade que é descrita como um ovo.
Juras
Hedwiges, ainda que apaixonada, teria rejeitado as juras de Viaro, que se casou com Yolanda Stroppa, musa de inúmeras outras pinturas. Constantino – filho único de Guido e Yolanda – desconhecia que o pai vivera um romance antes da mãe. A revelação ainda lhe soa estranha, mas não teve como não se render. O Guido Viaro que emerge da fala de Hedwiges soma algo de novo à biografia.
O pintor era um mito a anos-luz da figura de um forasteiro que arrasta asas para uma polaquinha. Viaro paira no imaginário paranaense como um sujeito de gestos largos, iluminado, viril, além de um braçal admirável. Como viveu numa Curitiba de paladar acanhado para a boa pintura, virava-se nos 30, acabando-se em aulas na Escola de Belas Artes, no Centro Juvenil de Artes Plásticas e em colégios que o chamassem. Tinha contas a pagar nas mercearias da Sete de Setembro. Difícil imaginá-lo na página de um romance – ao menos que fosse um folhetim de anarquistas. Na fala de Hedwiges, contudo, Guido é um sujeito humano, demasiadamente humano, que chora e implora que não o deixe.
A trama
Depois de se identificar na pintura A Polaca, exposta no MON, Hedwiges teve um sonho, no qual se reencontrava com Guido Viaro. Despertou apaixonada por ele, o que na sua lógica nada tem de absurdo. É espiritualista – um espírito evoluído dentro do kardecismo. Na mocidade, dispensara o pintor guiada por entes sobrenaturais. Na velhice, os mesmos seres lhe informaram de um reencontro marcado, muito além do jardim. Pode-se não crer. Difícil não se emocionar.
Essa poética de reencarnação garante cada minuto de A Polaca. Ninguém passa impune pela mulher, hoje com 104 anos, que qual adolescente deseja um amor que já se foi. Guido morreu em 1971. As descrições que faz de seu flerte com o artista, na década de 1930, são de um frescor tamanho que fazem dos mexericos das redes sociais um romance decadente.
Tudo se deu num salão dançante de alguma sociedade polonesa da época. Ela, Hedwiges, era talhada para a dança; ele, Viaro, viu-se às turras com a cera de vela espalhada pelo salão, de modo a garantir que os casais deslizassem. Riram juntos da falta de jeito dele. Bastou.
Depois de se declarar à pretendente, o italiano perde a ternura. Hedwiges recusa se casar. Ele teria rasgado o quadro – intitulado Conjectura e do qual não há registro. A Polaca fora pintada de memória, tempos depois, reforçando o ethos próprio de Viaro: a modelo não está ali para ser copiada, mas servir de base para a invenção. Que dirá essa invenção, apontada como um dos retratos mais importantes do modernismo brasileiro por outra crítica de arte – Adalice Araújo.
Em tempo. As passagens do documentário em que Maria José Justino – e ex-alunos de Viaro, como Teca Sandrini, Fernando Bini e Jair Mendes – dissecam a tela A Polaca são tão boas quanto o amor de naftalina narrado por Hedwiges. Os convidados de Severo operam uma verdadeira anatomia, juntando os fragmentos do discurso amoroso contidos em cada pincelada da tela.
Hedwiges, concluem, é a moça do quadro. Só um apaixonado a retrataria daquela forma. O que era um segredo da mulher tão velha, que até parece mentira, se torna um testamento. Depois dessa, Severo passou até a acreditar mais em destino. E que ele faz parte de um