Arte milenar, a tatuagem ganha mostra em Paris no Museu Quai Branly.
Com 300 obras, exposição em cartaz na capital francesa até 2015 traça panorama sobre a prática
Paris - De Ötzi, a múmia de 5.300 anos a.C., à atriz Angelina Jolie, a tatuagem impôs sua presença em variadas formas e por diferentes razões. Entre a prática ancestral — de funções terapêuticas, sagradas ou religiosas — e o consumo e a arte contemporâneos, a tatuagem sobreviveu aos milênios e aos costumes, da marca identitária à marginalização, subversiva ou comercial. Em Paris, a tatuagem moderna encontrou também sua consagração no museu. “Tatuadores e tatuados”, exposição em cartaz no Museu do Quai Branly até outubro de 2015, procura explorar por meio de 300 obras os usos da tatuagem ao longo do tempo, desde o figurino egípcio antes de Cristo. Mas se pretende inédita ao abordar as variantes estéticas, artísticas e multiculturais mais recentes da tatuagem.
A dupla francesa Anne & Julien, fundadora da revista “Hey! Modern Art & Pop Culture” e curadora da exposição, defende a tatuagem como uma arte em sua totalidade.
— Essa exposição é uma première mundial, porque eu e Julien quisemos dar um foco particular e exclusivo sobre a arte moderna e contemporânea. Nesta parte, situamos desde o começo do século XIX até os dias de hoje, algo que ainda não havia sido feito. É um período menos observado e mais nebuloso da tatuagem no mundo em relação a outras épocas bem pesquisadas do ponto de vista etnológico e antropológico — diz Anne, que critica a falta de curiosidade acadêmica pela tatuagem contemporânea.
A mostra apresenta obras, objetos e filmes considerando arcos históricos, geográficos e culturais, representados por América do Norte, Europa, Ásia e Oceania. Há a tatuagem ultrassofisticada dos maoris, da Nova Zelândia, e dos nativos das ilhas Marquesas, na Polinésia Francesa, mas também de marinheiros e de membros do crime organizado. Interditada pela Bíblia e malquista pelo governo da China, a prática também teve adeptos no poder como os monarcas britânicos Eduardo VII e George V ou os líderes Winston Churchill e Josef Stalin. Para a exposição, 13 réplicas de partes do corpo foram trabalhadas por tatuadores renomados, como o francês Tin-tin, o suíço Filip Leu, o japonês Horiyoshi III, o americano Jack Rudy, o inglês Xed LeHead e o polinésio Chimé.
Segundo uma pesquisa de opinião do instituto Ifop, um em cada dez franceses é tatuado, sendo 20% entre indivíduos de 25 a 34 anos. Nos Estados Unidos, um quarto da população ostenta alguma tatuagem, segundo sondagem do Instituto Harris, num aumento verificado principalmente a partir dos anos 1990, fenômeno impulsionado pela emergência de novas tecnologias. Para Anne & Julien, por muito tempo tatuadores e tatuados ocidentais não tinham a preocupação com o “belo”, mas consideravam a prática um ato bruto, relacionado à ousadia. A partir do fim do século XIX, assinalam, alguns tatuadores se qualificaram como tattoo artists para definir a dimensão de seu trabalho. É quando a tatuagem deixa o domínio exclusivamente artesanal para “questionar o tema e sua interpretação”.
Contra a “industrialização” e a “hipermidiatização” da tatuagem nos dias de hoje, em que a noção de arte se dilui na reprodução de modelos, Anne defende a ideia de “arte popular”. A história da tatuagem será transmitida pelos tatuadores e não pelos tatuados, ressalta.
— O fato de o material ser cada vez mais barato e acessível, inclusive via internet, e de haver cada vez mais clientes atraiu toda uma categoria de pessoas que improvisam, e se perde de vista a essência da tatuagem. É paradoxal, pois houve uma abertura, mas não se soube aproveitá-la, vieram pessoas sem vocação. Mas não estou preocupada, saberemos resistir. Não é a primeira vez que isso ocorre, foi a mesma coisa quando apareceu o aparelho elétrico de tatuagem. Temos todas as condições de continuar evoluindo de forma serena de um ponto de vista artístico — sustenta.
“ESTADO DE ESPÍRITO”
O tatuador Tin-tin definiu o processo como o “princípio dos vasos comunicantes”: a tatuagem se tornou reconhecida porque era subversiva, e agora que é reconhecida se tornou menos subversiva. Ötzi, a múmia do gelo, tinha 57 tatuagens, mas, em 2014, apesar da proclamada abertura das últimas décadas, Anne diz que “o preconceito ainda é muito forte”. Na sua opinião, ter tatuagem ainda pode influir negativamente para se obter um emprego, e a própria expansão da prática provoca confusões em potenciais tatuados:
— Há dois dias, um amigo, acostumado com tatuagens, mas que nunca havia feito uma, decidiu passar ao ato e se fez tatuar metade do braço. Mas algo ocorreu: ele não consegue mais olhar para o seu braço, o mantém todo o tempo coberto. A tatuagem transforma o corpo, muda a maneira como você se vê e também o olhar dos outros. Vivemos uma época particular, com toda a visibilidade, a midiatização, celebridades e esportistas tatuados, mas o impacto de uma grande tatuagem sempre é forte.
Anne & Julien levaram dois anos para elaborar o projeto de sua exposição para o Quai Branly, com o objetivo de render uma homenagem aos pioneiros e aos “heróis esquecidos” da tatuagem, mas também de saudar um “estado de espírito” que perdura apesar de sua progressiva difusão. Os dois curadores ficaram satisfeitos com o resultado obtido.
— O norte-americano Ed Hardy, personagem incontornável da tatuagem contemporânea, veio a Paris para ver o que fizemos e disse que esperava há 40 anos por uma exposição como essa. Achou magnífico. Ele foi um dos que mudaram a imagem da tatuagem a partir dos anos 1960-70, e começou a surgir uma reflexão sobre a ligação da tatuagem moderna e contemporânea com a evolução da história da arte — resume Anne.
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