Ana Mae Barbosa – O ensino de arte no Brasi...
Por Blog Acesso
Professora de pós-graduação daEscola de Comunicações e Artesda Universidade de São Paulo – ECA, Ana Mae Barbosa é uma das principais referências brasileiras em arte-educação e, embora já aposentada, ainda é disputada pelos alunos da instituição como orientadora. Desenvolveu, influenciada diretamente por Paulo Freire, o que chamou de abordagem triangular para o ensino de artes, concepção sustentada sobre a contextualização da obra, sua apreciação e o fazer artístico. A pesquisadora foi, também, a primeira a sistematizar o ensino de arte em museus, quando dirigiu o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC. Em entrevista ao Acesso, a professora falou sobre sua colaboração para a consolidação da arte-educação. Confira a seguir.
Acesso – Levando em conta sua experiência no MAC, como a senhora vê, de modo geral, os educativos de museus de hoje?
Ana Mae Barbosa – Eu procuro acompanhar como público. Nessa minha perambulação pelos museus, eu encontrei, uma vez, um excelente educador. A gente pode chamar de educador ou mediador, esse conceito de mediação vem de Paulo Freire, Jesús Martín-Barbero e de Régis Debray. Pois bem, encontrei esse mediador muito bom no Itaú Cultural. Ele não tentava me convencer de nada, e, para mim, o discurso de convencimento é o pior das visitas comentadas. Eu prefiro chamar de visita comentada no lugar de visita guiada porque, para mim, isso é preconceituoso, imaginar que o observador precisa ser guiado, há uma relação hierárquica, de poder. Também encontrei um mediador muito bom no Museu Afro Brasil. Agora, o discurso de convencimento é que é horrível, o discurso de que aquilo que está ali é bom e de que o museu é o máximo juiz da arte. A visita comentada deve ser dialogal, já no MAC eu a chamava de visita dialogada.
Acesso – E quais outros problemas a senhora identifica?
A. B. – Um deles é a terceirização. Quando saí do MAC, deixei 14 arte-educadores para fazerem um trabalho interdisciplinar constante. Tinha uma pessoa de música, outra de teatro, outra de artes, outra de dança e outra de literatura dando cursos para todas as áreas da USP, disciplinas cujo objetivo era fazer uma relação histórica entre o acervo do MAC e todas essas linguagens. Para isso, havia um corpo estável de educadores. O problema da terceirização é não se construir uma prática e nem uma história na instituição. Cada grupo que chega vai construir do zero. Isso acontecia até na Bienal. Eu tenho um aluno de doutorado fazendo uma pesquisa sobre os educativos das bienais. Ele começou há quatro anos e tem bienais sobre as quais ele não encontra nada, não ficou um material sequer para se saber a história desses educativos. Então, com a terceirização, os monitores são contratados por dois anos sabendo que tem que sair ao final desse período. É uma relação muito diferente. É um prejuízo imenso porque não se forma uma memória, nas instituições, do educativo. Além disso, os museus não instituem uma carreira. Se o educador de museu contratado faz um mestrado ele vai ganhar mais? Não há uma estruturação da carreira. Esses dois pontos, a terceirização e a estruturação de carreira, são, para mim, cruciais.
Acesso – E quanto à formação?
A. B. – Depois desses dois a gente vem para a formação. Para mim não se deve fechar em nenhum tipo de curso. Existe todo tipo de museu, de botânica, de geologia, etc. Então você não tem que restringir o ingresso de um educador por ele não ser da área do acervo do museu. A interdisciplinaridade é fundamental entre os educadores porque eles trocam informações. Tem uma dissertação da Federal do Rio Grande do Sul, da Gabriela Bonn, em que ela examina os desejos e a ação dos monitores – que, aliás, é uma palavra que a gente deixou de usar por remontar a uma época em que o monitor era somente um transmissor de ordens do curador. O curador chamava o educador no começo da exposição e dizia o que ele tinha que falar. Agora isso já mudou, já há alguma autonomia dos educadores.
Acesso – Já no ambiente escolar, a abordagem triangular desenvolvida pela senhora tornou-se referência. Como ela surgiu?
A. B. – A primeira desconfiança de que havia algo de errado com essa história de não levar a imagem da arte para a sala de aula ocorreu em 1983, no Festival de Inverno de Campos do Jordão, que foi dedicado aos professores. O Brasil estava saindo da ditadura, era a primeira realização do governo Franco Montoro [governador do estado de São Paulo entre 1983 e 1987]. Ao invés de ser um festival só de música, foi um festival de todas as artes para cerca de 400 professores da rede pública do estado de São Paulo. Montamos uma biblioteca, com livros da ECA, para consulta, mas que foi pouco utilizada. Os professores não estavam acostumados a ver, a valorização do ver não era contínua. Para fazer o programa do festival de Campos do Jordão, nós primeiro fizemos uma pesquisa sobre tudo o que havia na cidade ligado à arte e à cultura e potencializamos isso, chamamos para o festival, integramos às aulas. Descobrimos que muitos professores e alunos estavam fazendo coisas que se assemelhavam a trabalhos de artistas contemporâneos. E é muito importante ver a correspondência dos nossos produtos de criação com outros produtos. E assim começa essa ideia, que de contexto já era impregnada, por influência de Paulo Freire. Ele sempre alfabetizou a partir do contexto do aprendiz. É famoso o primeiro trabalho dele em que ele alfabetizou operários de obra e a primeira palavra estudada foi tijolo. É o ensinar através do campo de referências do aprendiz.
Acesso – E aí se constituíram os três elementos da abordagem?
A. B. – Ficamos com o fazer, o ver e analisar e a contextualização. Mas de alguma forma isso foi mal interpretado, e eu me decepcionei com essa má interpretação. O ver começou a se transformar em cópia e a contextualização em só saber sobre a vida do artista, o que só tem importância quando essa vida determina um processo na obra. Então, após uns 10 anos, ouvi um arte-educador espanhol dizer, em um encontro na Colômbia, que se a abordagem triangular não tivesse sido sistematizada por uma sul-americana, ela já estaria ganhando o mundo. Fui rever isso e uma aluna minha propôs fazer uma pesquisa, que foi muito importante para eu me reconciliar com a abordagem triangular. Muita coisa boa foi encontrada e publicamos um livro com os projetos.
Acesso – E como a abordagem triangular aparece hoje no ensino de arte nas escolas?
A. B. – O que a gente acrescentou foi a arte como cultura em sala de aula. E a abordagem triangular terminou sendo ajudada por algumas leis. Há uma lei que exige conteúdos de cultura africana no ensino fundamental e médio. Depois essa lei foi ampliada, exigindo conteúdos indígenas e, posteriormente, conteúdos locais no currículo. Quando se exige conteúdo local, se está exigindo contextualização social daquilo que é ensinado. Então foi muito interessante porque, de repente, potencializou-se a abordagem triangular a partir da valorização do elemento da contextualização. E, para mim, essa é uma lei que tem tido muito sucesso. Os professores têm procurado e têm aprendido sobre o meio ambiente do aluno. E isso aconteceu aliado à política dos Pontos de Cultura, na gestão do Gilberto Gil no Ministério da Cultura. Os Pontos de Cultura levantaram muito material, publicado com apoio da Petrobrás. É uma pena que essas publicações não sejam de acesso tão fácil para o professor, mas elas estão disponíveis em bibliotecas. Houve uma conjunção política que ajudou a abordagem triangular e hoje ela continua sendo transformada. É muito importante que a gente entenda que a metodologia é feita por cada professor. A gente dá abordagens metodológicas, mas a metodologia é feita por eles.
Bernardo Vianna / Blog Acesso
Acesso – Levando em conta sua experiência no MAC, como a senhora vê, de modo geral, os educativos de museus de hoje?
Ana Mae Barbosa – Eu procuro acompanhar como público. Nessa minha perambulação pelos museus, eu encontrei, uma vez, um excelente educador. A gente pode chamar de educador ou mediador, esse conceito de mediação vem de Paulo Freire, Jesús Martín-Barbero e de Régis Debray. Pois bem, encontrei esse mediador muito bom no Itaú Cultural. Ele não tentava me convencer de nada, e, para mim, o discurso de convencimento é o pior das visitas comentadas. Eu prefiro chamar de visita comentada no lugar de visita guiada porque, para mim, isso é preconceituoso, imaginar que o observador precisa ser guiado, há uma relação hierárquica, de poder. Também encontrei um mediador muito bom no Museu Afro Brasil. Agora, o discurso de convencimento é que é horrível, o discurso de que aquilo que está ali é bom e de que o museu é o máximo juiz da arte. A visita comentada deve ser dialogal, já no MAC eu a chamava de visita dialogada.
Acesso – E quais outros problemas a senhora identifica?
A. B. – Um deles é a terceirização. Quando saí do MAC, deixei 14 arte-educadores para fazerem um trabalho interdisciplinar constante. Tinha uma pessoa de música, outra de teatro, outra de artes, outra de dança e outra de literatura dando cursos para todas as áreas da USP, disciplinas cujo objetivo era fazer uma relação histórica entre o acervo do MAC e todas essas linguagens. Para isso, havia um corpo estável de educadores. O problema da terceirização é não se construir uma prática e nem uma história na instituição. Cada grupo que chega vai construir do zero. Isso acontecia até na Bienal. Eu tenho um aluno de doutorado fazendo uma pesquisa sobre os educativos das bienais. Ele começou há quatro anos e tem bienais sobre as quais ele não encontra nada, não ficou um material sequer para se saber a história desses educativos. Então, com a terceirização, os monitores são contratados por dois anos sabendo que tem que sair ao final desse período. É uma relação muito diferente. É um prejuízo imenso porque não se forma uma memória, nas instituições, do educativo. Além disso, os museus não instituem uma carreira. Se o educador de museu contratado faz um mestrado ele vai ganhar mais? Não há uma estruturação da carreira. Esses dois pontos, a terceirização e a estruturação de carreira, são, para mim, cruciais.
Acesso – E quanto à formação?
A. B. – Depois desses dois a gente vem para a formação. Para mim não se deve fechar em nenhum tipo de curso. Existe todo tipo de museu, de botânica, de geologia, etc. Então você não tem que restringir o ingresso de um educador por ele não ser da área do acervo do museu. A interdisciplinaridade é fundamental entre os educadores porque eles trocam informações. Tem uma dissertação da Federal do Rio Grande do Sul, da Gabriela Bonn, em que ela examina os desejos e a ação dos monitores – que, aliás, é uma palavra que a gente deixou de usar por remontar a uma época em que o monitor era somente um transmissor de ordens do curador. O curador chamava o educador no começo da exposição e dizia o que ele tinha que falar. Agora isso já mudou, já há alguma autonomia dos educadores.
Acesso – Já no ambiente escolar, a abordagem triangular desenvolvida pela senhora tornou-se referência. Como ela surgiu?
A. B. – A primeira desconfiança de que havia algo de errado com essa história de não levar a imagem da arte para a sala de aula ocorreu em 1983, no Festival de Inverno de Campos do Jordão, que foi dedicado aos professores. O Brasil estava saindo da ditadura, era a primeira realização do governo Franco Montoro [governador do estado de São Paulo entre 1983 e 1987]. Ao invés de ser um festival só de música, foi um festival de todas as artes para cerca de 400 professores da rede pública do estado de São Paulo. Montamos uma biblioteca, com livros da ECA, para consulta, mas que foi pouco utilizada. Os professores não estavam acostumados a ver, a valorização do ver não era contínua. Para fazer o programa do festival de Campos do Jordão, nós primeiro fizemos uma pesquisa sobre tudo o que havia na cidade ligado à arte e à cultura e potencializamos isso, chamamos para o festival, integramos às aulas. Descobrimos que muitos professores e alunos estavam fazendo coisas que se assemelhavam a trabalhos de artistas contemporâneos. E é muito importante ver a correspondência dos nossos produtos de criação com outros produtos. E assim começa essa ideia, que de contexto já era impregnada, por influência de Paulo Freire. Ele sempre alfabetizou a partir do contexto do aprendiz. É famoso o primeiro trabalho dele em que ele alfabetizou operários de obra e a primeira palavra estudada foi tijolo. É o ensinar através do campo de referências do aprendiz.
Acesso – E aí se constituíram os três elementos da abordagem?
A. B. – Ficamos com o fazer, o ver e analisar e a contextualização. Mas de alguma forma isso foi mal interpretado, e eu me decepcionei com essa má interpretação. O ver começou a se transformar em cópia e a contextualização em só saber sobre a vida do artista, o que só tem importância quando essa vida determina um processo na obra. Então, após uns 10 anos, ouvi um arte-educador espanhol dizer, em um encontro na Colômbia, que se a abordagem triangular não tivesse sido sistematizada por uma sul-americana, ela já estaria ganhando o mundo. Fui rever isso e uma aluna minha propôs fazer uma pesquisa, que foi muito importante para eu me reconciliar com a abordagem triangular. Muita coisa boa foi encontrada e publicamos um livro com os projetos.
Acesso – E como a abordagem triangular aparece hoje no ensino de arte nas escolas?
A. B. – O que a gente acrescentou foi a arte como cultura em sala de aula. E a abordagem triangular terminou sendo ajudada por algumas leis. Há uma lei que exige conteúdos de cultura africana no ensino fundamental e médio. Depois essa lei foi ampliada, exigindo conteúdos indígenas e, posteriormente, conteúdos locais no currículo. Quando se exige conteúdo local, se está exigindo contextualização social daquilo que é ensinado. Então foi muito interessante porque, de repente, potencializou-se a abordagem triangular a partir da valorização do elemento da contextualização. E, para mim, essa é uma lei que tem tido muito sucesso. Os professores têm procurado e têm aprendido sobre o meio ambiente do aluno. E isso aconteceu aliado à política dos Pontos de Cultura, na gestão do Gilberto Gil no Ministério da Cultura. Os Pontos de Cultura levantaram muito material, publicado com apoio da Petrobrás. É uma pena que essas publicações não sejam de acesso tão fácil para o professor, mas elas estão disponíveis em bibliotecas. Houve uma conjunção política que ajudou a abordagem triangular e hoje ela continua sendo transformada. É muito importante que a gente entenda que a metodologia é feita por cada professor. A gente dá abordagens metodológicas, mas a metodologia é feita por eles.
Bernardo Vianna / Blog Acesso