Compartilhado do blog Valor Monetário
A galerina Mariana Teixeira não fazia ideia de quem era aquele estrangeiro de cabelos grisalhos que acabara de entrar na Galeria Luisa Strina, em São Paulo. Atendeu o colecionador, que buscava informações, e, ao fim, recebeu um convite. Ele tinha uma banda e perguntou se não gostaria de ir ao show que faria naquela noite de 2011. Pouco depois, ela ficou sabendo que seu nome era Adam Clayton; seu instrumento, contrabaixo, e sua modesta banda, U2 (que reuniu na ocasião 90 mil pessoas no estádio do Morumbi). Dois anos depois, os dois se casavam na Riviera Francesa. Entre os seletos convidados, a sorridente dona da galeria, Luisa Strina, e o líder da banda, Bono, posavam para uma foto divulgada no movimentado Instagram da galerista.
Mais do que anedota sobre uma insuspeita vocação de cupido de Luisa, o casamento é apenas um pequeno exemplo da amplitude e das ramificações da rede de contatos do mundo do mercado de arte. Milionários e celebridades são alguns dos clientes constantes nesse meio cosmopolita onde luxo, glamour, reputação e poder são moedas correntes.
Luisa Strina é não apenas dona da mais longeva galeria de arte contemporânea de São Paulo, que completa 40 anos em 2014. Ela é a 61ª pessoa mais poderosa da arte mundial, segundo o comentado ranking que a revista britânica "ArtReview" faz desde 2002 envolvendo colecionadores, artistas e galeristas, entre outros.
"No ano 3000 eu serei a primeira, chego lá", diz Luisa em tom de brincadeira. "Não dou muita importância para listas, mas ela é importante para o Brasil, para o país ter representantes no mercado internacional." Neste ano, ela, que entrou no ranking em 2012, subiu dez posições, ficando à frente de artistas como o blue chip Takashi Murakami, o premiado John Baldessari e Yayoi Kusama (cuja exposição no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio tem reunido multidões), e o empresário Bernardo Paz (75ª posição), o outro brasileiro da lista, criador do Instituto Inhotim e cliente da galerista. A lista gera muito ciúme? "Ele [Paz] me ligou e falou: 'Luisa, quando é que eu vou te passar?'. Eu disse: 'Você não precisa me passar, você é o primeiro, sempre'. Isso tudo é uma bobagem, é uma brincadeira."
Durante a entrevista ao Valor, Luisa dá amostras de seu método de atuação, que lhe permitiu tornar-se uma espécie de porta-voz informal das galerias de marca do mercado primário. Jovial e inquieta, ela faz com que sofisticação e elegância rimem com um temperamento quente ("calabresa", como explica mais à frente). Ela harmoniza esses elementos para comandar com mão de ferro e determinação o ambiente ao redor. Sentada na cadeira de sua mesa de trabalho com a mesma segurança de um comandante de navio em águas nem sempre tranquilas, a concentrada Luisa mede e pesa cuidadosamente suas palavras à reportagem, enquanto atende o telefone, digita no computador, passa orientações à assistente e, com mãos hiperativas, brinca com objetos da mesa. "Jornalista é sempre assim: bonzinho na hora da entrevista, mas quando você vai ler a matéria no dia seguinte...."
Ela não é a primeira galerista de contemporâneos em São Paulo. Antes teve Ralph Camargo e, ainda nos anos 1970, Raquel Arnaud também já atuava. Luisa tem, no entanto, papel precursor na internacionalização do setor. Empreendedora solitária, dispensou sócios e não mudou o nome da galeria (apenas de numeração, sempre na mesma rua Padre João Manuel, nos Jardins). "Qual é meu talento? Não sei... É juntar pessoas, acho." Para a "ArtReview", Luisa é "um dos maiores e melhores canais para a arte brasileira".
Sua galeria representa 40 artistas (incluindo estrangeiros como o dinamarquês Olafur Eliasson e o espanhol Antoni Muntadas), em sua maioria conceituais e com presença nos principais eventos e instituições mundiais, como Cildo Meireles (um dos nomes locais mais valorizados mundialmente), Marepe, Renata Lucas, Laura Lima e Marcius Galan. "Se eu acredito no artista, posso ficar comprando obras dele durante 20 anos sem vender. Eu não sou imediatista."
Ainda que não diga, Luisa é exímia estrategista. Antes do marchand Marcantonio Vilaça (1962-2000), que teve atuação central na profissionalização do setor nos anos 1990, Luisa foi durante anos a única latino- americana na Art Basel, a celebrada feira de arte que atualmente tem filiais em Miami Beach (desta, Luisa fez parte do comitê de seleção de galerias durante 12 anos) e Hong Kong.
"Fui a Nova York recentemente e nove brasileiros estavam expondo em ótimas galerias. Expor no exterior não quer dizer nada - você pode expor em uma galeria ruim. Em Londres, temos a Mira Schendel na Tate Modern, três ou quatro brasileiros expondo.... As duas cidades mais importantes para as artes: [o cenário] nunca esteve tão bom quanto agora", diz Luisa. "Toda galeria que se preza quer ter um artista brasileiro."
"Hoje temos sérios colecionadores no Brasil. Coleções com conceito. E muitos jovens começaram a comprar porque gostam de arte", afirma. "Isso não existia antes dos anos 2000." Ela não nega, no entanto, a existência de colecionadores privados que veem a arte apenas como investimento. "Alguns trabalhos extrapolaram os preços, então virou um jogo. A pessoa pensa: 'Vou comprar uma obra bem baratinha e, quem sabe, o artista vira um nome internacional que vale R$ 5 milhões'. Acho que esses colecionadores estão errados porque não é por aí." Questionada se já se recusou a vender obras, Luisa não titubeia: "Várias vezes...".
"Hoje temos sérios colecionadores no Brasil. Coleções com conceito. E muitos jovens começaram a comprar", diz galerista
"Agencio o artista. O trabalho dele não é feito em série", diz. "Tenho que colocar o trabalho dele nos melhores lugares, nos melhores museus, nas melhores coleções. Se posso colocar no museu, não vou vender para você. Mesmo que eu demore mais tempo para receber o pagamento, mesmo que seja com mais desconto, prefiro vender para um museu, porque meu papel é projetar o artista, e no museu ele vai ter mais visibilidade."
Além desse papel de agente intermediador, Luisa tem sido uma das principais representantes da categoria que está questionando o Estatuto dos Museus, divulgado em outubro. Alguns pontos tem causado polvorosa no circuito, como o que dá ao governo federal o poder de monitorar obras brasileiras de coleções privadas consideradas de interesse público. Tais obras teriam restrições relativas à venda, circulação e restauro. Segundo profissionais do setor, as regras não estão claras e poderiam afetar negativamente o mercado. Luisa, no entanto, prefere não se manifestar na mídia sobre o tema. Há duas semanas, sua casa foi sede de um encontro entre colecionadores, artistas, marchands e o presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Ângelo Oswaldo de Araújo Santos. Ao Valor, Luisa diz apenas: "A reunião foi muito proveitosa, o sr. Ângelo Oswaldo prometeu rever o decreto".
Foram muitos os altos e baixos da economia desde os anos 1970. Diferentemente de outros colegas, Luisa sobreviveu. Cita a era Collor (1990-1992) como o período mais crítico. "Estava em Nova York na abertura de uma mostra do Cildo [Meireles] quando estourou aquela história [do confisco] da poupança. Todos chegavam e falavam sobre isso, e eu não entendia", relembra Luisa. "Quando voltei a São Paulo, tive a sensação de que não tinha mais nada, apenas telas de algodão de linho pintadas que não valiam nada." No desespero, vendeu uma tela de Alfredo Volpi (1896-1988) por "US$ 10". "Achei que tinha que vender o pano pelo valor do pano senão não ia sobreviver." No dia seguinte apareceram cinco pessoas querendo comprar Volpi. "Mas daí tomei consciência do que tinha feito." Em 2011, o artista ítalo-brasileiro atingiu seu recorde, quando teve obra leiloada por US$ 842,5 mil na Christie's, em Nova York.
Por testemunhar mudanças de cenários, Luisa leva alguns sustos. "Tem vários casos de eu entrar numa casa e comentar: 'Que linda essa Mira Schendel!', e a pessoa falar: 'Ah, mas foi você quem me deu de Natal, esqueceu?'. Vários artistas que dei de presente estão hoje em museus." Artista suíça radicada no Brasil, Mira (1919- 1988) passa há alguns anos por uma redescoberta. Em 2005, uma obra sua foi leiloada por US$ 284,8 mil na Christie's.
A primeira participação de Luisa na Art Basel, em 1990, coincidiu com uma crise econômica mundial e a Copa do Mundo. Se hoje passear pelos corredores da feira tem certo parentesco com a experiência de andar no metrô em horário de pico, naquele ano, "a cada dez minutos passava uma pessoa". Para matar o tempo, galeristas levaram televisores para assistir aos jogos. Por coincidência, foi uma das mais frustrantes campanhas da seleção brasileira.
Para Luisa, há um momento claro em que o mundo começou a prestar mais atenção à arte brasileira: a 24ª Bienal de São Paulo, em 1998, considerada uma das melhores de sua história, que teve curadoria de Paulo Herkenhoff e a antropofagia como eixo conceitual. "Essa Bienal atraiu a atenção de colecionadores importantes, como a [venezuelana] Patricia Cisneros [dona de um dos principais acervos de arte latino-americana do mundo]. Ela foi a primeira, e naquela época vinha sozinha, sem curador. Comprava o que tinha de melhor, tinha um grande olho."
Nascida em 1943 em São Paulo, Luisa Malzone Strina vem de família italiana. O pai, do norte da Itália, tinha uma fábrica de papel; a mãe, do sul, colecionava antiguidades. "Acho que foi daí que o Cildo [Meireles] tirou essa história", diz Luisa, referindo-se à piada interna que explica a longeva parceria - trabalham juntos há 31 anos, fidelidade rara entre artista e galerista. "Quando ele me telefona, se a minha voz é 'calabresa', ele desliga. Então a gente fala só quando estou 'à milanesa'." No dia desta entrevista ela estava bem "milanesa".
Luisa conta que a abertura da galeria, quando tinha 30 anos de idade, não foi planejada, mas quase um acaso. Chegou a estudar psicologia ("No segundo ano tive que abrir o coração de um sapo. Me horrorizei e nunca mais voltei") porque não havia na época faculdade de artes. O tempo mostrou que a escolha não estava de todo equivocada; a habilidade para tentar entender o outro é algo que a profissão de marchand demanda. Como tinha horror a sangue, quis "cortar o mal pela raiz" e fez curso de enfermagem do lar. Trabalhou em uma companhia de seguros onde apareciam pessoas "sem braço, sem mão, sem dedo". "Costurava de tudo." Décadas depois, Luisa, já galerista, usaria habilidades manuais no bordado (um de seus hobbies) para fazer um trabalho como artista, em parceria com Alexandre Cunha (também representado por ela), "Fair Trade".
Mas ao mesmo tempo em que, na base da tentativa e erro, ia e vinha por diferentes caminhos - trabalhou ainda como instrumentadora de cirurgia plástica com David Serson -, Luisa tinha planos de se tornar artista. Fez cursos livres, como fotografia e pintura, na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), e, ao ingressar na Escola Brasil, encontrou pessoas que ajudaram a definir sua vida.
Na escola - de breve duração (1970-1974) e onde estudaram artistas como Sérgio Fingermann, Flávia Ribeiro e a galerista Regina Boni -, Luisa começou a trabalhar com professores, como Carlos Fajardo e Luiz Paulo Baravelli. Se por um lado descobria que não tinha vocação para artista ("Eu copiava. Não sou criadora"), ela via que atuar como marchand era natural. "Programava exposições deles nos museus e em galerias. Achava esse trabalho uma delícia."
As coisas ficaram mais sérias quando Baravelli, que tinha um ateliê na esquina da rua Padre João Manuel com a Oscar Freire, começou a reclamar do preço do aluguel. "Ele falou que ou eu abria uma galeria naquele espaço, ou todos eles iam arranjar uma galeria, porque precisavam de alguém para cuidar do trabalho deles." Entre os artistas com quem trabalhou estava Wesley Duke Lee (1931-2010). O artista parecia ser inevitável para Luisa: a origem da Escola Brasil deve muito ao integrante do Grupo Rex, referência na vanguarda paulista dos anos 1960 - os fundadores da escola se encontraram em um curso que ele ministrava. Com Lee, a galerista manteve um casamento de oito anos. Depois, permaneceu solo também na vida afetiva.
"Abri a galeria como se tivesse um revólver na cabeça. Pensei: 'Vamos ver o que acontece. Se não der certo, fecho. Aí, foi, foi, e estou aqui, 40 anos depois." Empolgada com o Instagram ("É meu divertimento atual"), Luisa fotografa museus, restaurantes e outros pontos turísticos dos países que visita constantemente por obrigações profissionais. Assim, põe em prática ensinamentos dos cursos que fez no passado ("Outro dia estava com a [artista] Rivane [Neuenschwander] e falamos: 'Vamos um dia fazer um trabalho juntas?'"). A animação se estende à atuação como marchand. Diferentemente de galeristas que se aposentaram, como Thomas Cohn, no ano passado, Luisa não pensa em parar. "Porque ainda me diverte. Quando não me divertir mais, aí eu fecho."