Grafiteiros usam a mesma linguagem da pichação para aprofundar a relação do curitibano com a sua própria cidade
É batata. Convide alguém para caminhar pelo Centro de Curitiba, na altura do encontro das ruas Marechal Deodoro e Conselheiro Laurindo e aguarde. Dedos irão apontar para o prédio que está recebendo um grafite gigantesco. Mesmo que ainda só exista metade de um Ray Charles, ninguém repara na pichação que cobre o muro e o portão do estacionamento do mesmo prédio.
A cena é perfeita para reforçar, mais do que a ojeriza à pichação, as possibilidades de utilizar o grafite para o bem da cidade.
Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo
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Conheça a equipe Motion Layers: O projeto Motion Layers tem quatro integrantes. Na foto, da esquerda para a direita, o colaborador Luiz Fuja, e os artistas Eduardo Melo (o Artstenciva, que já mostrou trabalhos de arte urbana na Alemanha e na França), Leandro Lesak (o Cínico, que atua como designer e ilustrador e foi um dos fundadores, em 2008, do Espaço de Arte A Casa) e Celestino Dimas (que já expôs no Museu Oscar Niemeyer e Museu de Arte Contemporânea). Cada um deles vai pintar um prédio de Curitiba individualmente e todos assinarão outro, coletivamente.
Historicamente as duas formas de expressão fazem parte da mesma linguagem.
“É tudo uma coisa só porque as raízes e as motivações são as mesmas. E o nosso público é todo mundo”, diz Celestino Dimas, um dos integrantes do projeto Motion Layers – contemplado via Lei Municipal de Incentivo à Cultura – que irá colorir quatro prédios até o fim deste mês.
Os três artistas – Dimas é acompanhado por Eduardo Melo, o Artstenciva, e Leandro Lesak, o Cínico – são unânimes em dizer que a pichação não irá acabar por causa de uma lei, justamente porque é uma forma de expressão que envolve, além da intervenção no muro alheio, que é crime, questões mais complexas, como a necessidade de pertencimento e de autoafirmação. “Se quisessem desestimular, teriam que ignorar”, sugere Dimas.
Então, aproveitar o talento dos artistas para o bem da cidade talvez seja a saída menos dolorosa. Mas nem sempre é tão fácil. Há uma coincidência entre dois proprietários de prédios que aceitaram a ideia, sem pestanejar: o “estrangeirismo”. Um dos lugares é um hotel, cujo gerente é português. O outro prédio fica na Rua XV com a Tibagi: o dono vive em contato com o filho, que mora em Los Angeles. “Em Curitiba é um começo, mas tivemos uma recepção muito boa com esse projeto”, comenta Dimas.
O objetivo maior, além de destruir o “ego autoral” dos pichadores, que passam a trabalhar em equipe por um bem comum, é transformar a relação dos habitantes com sua própria cidade. “O grafite desperta o convívio, faz com que as pessoas se sintam mais donas do espaço público, que passou a ser o lugar dos carros. É uma retomada de uma cultura mais afetiva com a cidade, além de ser um avanço técnico e estético em relação à pichação.”
Prova disso é o comerciante Marcos Marins, 48 anos, pedestre atento, que interveio na conversa. “Parabéns pelo trabalho. Isso traz mais vida para a cidade e é bem melhor que outdoor de loja e propaganda política”, disse, apontando para o meio Ray Charles.
“Domesticar” a intervenção não dá resultado
A tentativa de domesticação da arte de rua atrapalha a relação. Depender de autorização do poder público para expressar não está nos planos dos grafiteiros. A Fundação Cultural de Curitiba (FCC) promoveu nos últimos anos ações pontuais para atender a demanda dos artistas: o edital de 2006, que proporcionou a pintura dos viadutos do Xaxim e Alto da XV, por exemplo, e encontros de artistas no Solar do Barão, espaço “nobre” em Curitiba.
Roberto Alves, ex-coordenador de artes visuais da FCC, destaca que a função do poder público é fazer o “meio campo” para os artistas e que a base de tudo é a própria cidade. “Damos a chancela para o reconhecimento. Fazemos intermediação com espaços que querem ceder seus muros para a grafitagem, por exemplo, mas é impossível ter controle total sobre essa linguagem”, explica. Alves também não concorda com a “caçada” aos pichadores. “A repressão não pode ser uma resposta.”
Alves ainda sugere mudanças nas medidas educativas, para que um atual pichador consiga evoluir em sua própria arte e crie pensando na cidade em que vive. “Ao invés de mandar pintar muro ou assistir palestra, que esses possíveis futuros artistas sejam incluídos em cursos de arte ou projetos como o jovem empreendedor.”