A pujança financeira de regiões como golfo Pérsico, Cazaquistão, Rússia ou China redesenha o panorama tradicional das grandes infraestruturas artísticasl
COMPARTILHADO DE EL PAÍS - BORJA HERMOSO Madrid 4 NOV 2013 - 02:04 BRST
Museus de bilhões de euros sob cúpulas gigantes, teatros de ópera dignos das mil e uma noites, no meio do nada ou do quase nada, franquias artísticas religiosamente pagas graças aos petrodólares ou gasodólares, festivais de cinema no golfo Pérsico artificial, lotados de estrelas de Hollywood; sofisticadas sheiks do Oriente que lideram as listas das pessoas mais influentes do mundo da arte; pintores e colecionadores chineses monopolizando o pódio do mercado nos termômetros de Londres, Miami ou Maastricht (um estudo revelou no ano passado que a China tomava dos EUA o primeiro lugar no mercado mundial de arte e antiguidades); novos museus particulares e novos festivais de cinema em locais de economia emergente como Brasil, Índia, Marrocos ou a própria Rússia... Espaços faraônicos para a música e a arte construídos por Nouvel, Foster, Gehry, Pei, Hadid e outros gênios do momento. A cultura muda de cenário, ou pelo menos, agrega novos cenários. A tradicional hegemonia do Ocidente – Paris, Roma, Londres, Berlim, Nova York e daí em diante – na tomada de decisões e na implementação de projetos culturais passou a enfrentar a concorrência do Oriente, ou, conforme se olha para o globo, da direita.
Cazaquistão, Omã, Catar, Dubai, Abu Dhabi, Índia ou Marrocos nunca ou quase nunca haviam figurado nas páginas de Cultura dos grandes meios de comunicação internacionais, nem – o que sem dúvida é muito mais importante para seus governantes – nas agendas dos principais empresários artísticos, dos grandes escritórios de arquitetura, dos programadores musicais, dos produtores e distribuidores cinematográficos que ditam a lei e até mesmo dos chefes de gabinete e de protocolo de governos e famílias reais do mundo inteiro.
A recente inauguração, com Attila, de Verdi, do Teatro da Ópera de Astana, capital multimilionária e extremamente jovem (15 anos) da República do Cazaquistão, por obra e graça do presidente Nazarbayev, é apenas o último capítulo de um fenômeno cujo horizonte parece ilimitado: a transferência planetária de enormes doses da inteligência emocional necessária para produzir projetos de autêntico cunho intelectual, ou pelo do que podemos chamar diretamente de verbas da cultura, ou seja, esses descomunais volumes de capital público e privado que, graças a acordos às claras ou por debaixo dos panos entre governantes e investidores, permitem construir novos templos da criação. E, falando em dinheiro e cultura: o novo símbolo cazaque de música lírica, em Astana, custou cerca de 500 milhões de euros (R$ 1,5 milhão).
Enquanto os museus da velha e outrora absoluta Europa tentam de tudo para aguentar os golpes da crise – tirando seus recursos do armário, trabalhando em rede ou concluindo acordos salvadores com patrocinadores particulares para saírem do atoleiro (antes os mecenas se chamavam Médici, e agora se chamam Banca) –, os emires e os sheiks do Oriente Médio erguem babilônias culturais com seus talões de cheques.
Esse é o caso da sheik Mayassa Bint Hamed bin Khalifa Al Thani. Essa mulher de 30 anos, que estudou na Escola de Ciências Políticas de Paris e na Universidade Duke (Carolina do Norte, EUA) antes de completar sua formação na sede da Unesco, em Paris, reúne uma dupla condição: ser a mais inteligente da classe e ser filha do ex-emir do Catar Hamed bin Khalifa e de uma de três mulheres dele, Mozah bint Nasser al-Missned, também sheik, presidente da Fundação Catar (um motor de expansão do Catar no mundo) e sem dúvida a mais charmosa primeira-dama oriental.
Foi a sheik Mayassa quem tornou possível a inauguração do Museu Islâmico de Doha, em 2008, e do Museu de Arte Moderna Árabe, em 2010
Com seus vastos conhecimentos de arte, seu dinamismo e sua evidente habilidade nos salões diplomáticos, foi ela quem viabilizou em 2008 a abertura do Museu de Arte Islâmica de Doha, assim como do Museu de Arte Moderna Árabe, em 2010, também na capital do Catar. Certamente será ela que em 2014 cortará a fita inaugural do Museu Nacional do Catar, obra de Jean Nouvel. Suas façanhas não terminam aí: a presidente da Fundação Nacional de Museus convenceu seu pai a pagar 191 milhões de euros (recorde absoluto para uma obra) por “Os Jogadores de Cartas”, de Cézanne. O Catar, dono da terceira maior reserva mundial de gás, tem sido o maior comprador mundial de arte contemporânea nos últimos cinco anos, segundo o muito confiável The Art Newspaper. Dinheiro? O gás e o petróleo, assim como os diamantes e o ouro, servem como fonte inesgotável. E a inteligência emocional? Bem, os dignitários do golfo Pérsico sabem onde e como encontrá-la: com os head hunters capazes de se deparar em Paris, Nova York ou Londres com essa cobiçada cabeça pensante capaz de criar sinergias, mobilizar contatos, atrair investidores e fabricar ou renovar conceitos, como por exemplo o intercâmbio cultural universal, a aliança de civilizações e a parceria Oriente/Ocidente através da cultura, a qual, como todos sabemos, é um passaporte para a respeitabilidade, desejado por qualquer bom governante – aquele que sabe decifrar ou intuir os saborosos dividendos políticos e econômicos que os bens espirituais conferem quando administrados com tino. Se ainda faltava alguma coisa, muitos desses ideólogos da aposta em um novo mapa-múndi cultural se formaram em lugares pouco afeitos a apostas e muito obstinados a valores seguros, como França, EUA e Reino Unido.
A jovem sheik do Catar também conseguiu convencer Robert de Niro a implantar em Doha uma filial do Festival de Cinema de Tribeca, que já teve quatro edições e leva a cada ano a Doha uma constelação de estrelas de Hollywood. Mas esse não é o único festival de cinema do golfo Pérsico: também as vizinhas Dubai (com a sua Burj Khalifa, a torre mais alta do mundo, com 828 metros) e Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, têm os seus.
E, falando em Abu Dhabi, é possível que não exista um melhor símbolo do que esse pequeno emirado árabe para designar esse processo atual que, do centrípeto para o centrífugo, está dando lugar a um frenético movimento de fichas no deslocamento da hegemonia em matéria de infraestruturas culturais.
Em 2015, o Louvre Abu Dhabi vai coroar o seu sonho de eclipsar a rival Dubai (ainda se recuperando da crise de 2008 que quase levou a cidade à falência) como farol cultural do Oriente Médio.
Mas o Louvre de Abu Dhabi não será o último sonho dos sheiks do Golfo: em 2016 eles esperam inaugurar o Museu Nacional, de Norman Foster, e em 2017 – a cereja do bolo – o maior Guggenheim do mundo, o Guggenheim Abu Dhabi, obra de Frank O. Gehry. Esses mastodontes culturais, somados ao Museu Marítimo do japonês Tadao Ando e a um grande auditório projetado por Zaha Hadid, serão os grandes atrativos da ilha de Saadiyat (Ilha da Felicidade), um verdadeiro conto oriental transformado em realidade na forma de bairro cultural, com museus, centros comerciais, hotéis e apartamentos superluxuosos e filiais de universidades europeias e americanas. O preço de Saadiyat? Cerca de € 20 bilhões