Porque a vida não basta - FERREIRA GULLAR
COMPARTILHADO DA FOLHA DE SÃO PAULO
Embora tenha frequentemente criticado o que se chama de arte contemporânea, devo deixar claro que não pretendo negá-la como fato cultural. Seria, sem dúvida, infundado vê-la como fruto da irresponsabilidade de alguns pseudo-artistas, que visam apenas chocar o público.
Há isso também, é claro. Mas não justificaria reduzir a tais exemplos um fenômeno que já se estende por muitas décadas e encontra seguidores em quase todos os países.
Por isso, se com frequência escrevo sobre esse fenômeno cultural, faço-o porque estou sempre refletindo sobre ele. Devo admitir que ninguém me convenceria de que pôr urubus numa gaiola é fazer arte, não obstante, me pergunto por que alguém se dá ao trabalho de pensar e realizar semelhante coisa e, mais ainda, por que há instituições que a acolhem e consequentemente a avalizam.
O fato de negar o caráter estético de tais expressões obriga-me, por isso mesmo, a tentar explicar o fenômeno, a meu ver tão contrário a tudo o que, até bem pouco, era considerado obra de arte. Não resta dúvida de que alguma razão há para que esse tipo de manifestação antiarte (como a designava Marcel Duchamp, seu criador) se mantenha durante tantos anos.
Não vou aqui repetir as explicações que tenho dado a tais manifestações, as quais, em última análise, negam essencialmente o que se entende por arte. Devo admitir, porém, que a sobrevivência de tal tendência, durante tanto tempo, indica que alguma razão existe para que isso aconteça, e deve ser buscada, creio eu, em certas características da sociedade midiática de hoje. O fato de instituições de grande prestígio, como museus de arte e mostras internacionais de arte, acolherem tais manifestações é mais uma razão para que discutamos o assunto.
Uma observação que me ocorre com frequência, quando reflito sobre isso, é o fato de que obra de arte, ao longo de 20 mil anos, sempre foi produto do fazer humano, o resultado de uma aventura em que o acaso se torna necessidade graças à criatividade do artista e seu domínio sobre a linguagem da arte.
Das paredes das cavernas, no Paleolítico, aos afrescos dos conventos e igrejas medievais, às primeiras pinturas a óleo na Renascença e, atravessando cinco séculos, até a implosão cubista, no começo do século 20, todas as obras realizadas pelos artistas o foram graças à elaboração, invenção e reinvenção de uma linguagem que ganhou o apelido de pintura.
Isso não significa que toda beleza é produto do trabalho humano. Eu, por exemplo, tenho na minha estante uma pedra --um seixo rolado-- que achei numa praia de Lima, no Peru, em 1973, que é linda, mas não foi feita por nenhum artista. É linda, mas não é obra de arte, já que obra de arte é produto do trabalho humano.
Pense então: se esse seixo rolado, belo como é, não pode ser considerado obra de arte, imagine um casal de urubus postos numa gaiola, que de belo não tem nada nem mantém qualquer relação com o que, ao longo de milênios, é tido como arte. Não se trata, portanto, de que a coisa tenha ou não tenha qualidades estéticas --pois o seixo as tem-- e, sim, que arte é um produto do trabalho e da criatividade humana. Se é boa arte ou não, cabe à crítica avaliar.
E toca-se aqui em outro problema surgido com essa nova atitude em face da arte. É que, assim como o que não é fruto do trabalho humano não é arte, também não é possível exercer-se a crítica de arte acerca de uma coisa que ninguém fez.
O que pode o crítico dizer a respeito dos urubus mandados à Bienal de São Paulo? A respeito de um quadro, poderia ele dizer que está bem mal-executado, que a composição é pobre ou as cores inexpressivas, mas a respeito dos urubus, que diria ele? Que não seriam suficientemente negros ou que melhor seria três em vez de dois? Não o diria, pois nada disso teria cabimento. Não diria isso nem diria nada, porque não é possível exercer a crítica de arte sobre o que ninguém fez.
Desse modo --e inevitavelmente--, a chamada arte contemporânea acabou também com a crítica de arte. Isso tudo é, sem dúvida, a expressão da crise grave por que passam hoje as artes plásticas.
Costumo dizer que a arte existe porque a vida não basta. Negar a arte é como dizer que a vida se basta, não precisa de arte. Uma pobreza!
Ferreira Gullar é cronista, crítico de arte e poeta. Escreve aos domingos na versão impressa de "Ilustrada".
Noemi Jaffe: De urubus e outros entortamentos
Compartilhado da Folha de São Paulo 29/09/2013
Com insistência, o poeta Ferreira Gullar vem reiterando em sua coluna naFolha que os "urubus presos em gaiolas", ou "o casal nu postado numa porta" não são obras de arte.
Seus principais argumentos seriam: 1) o fato de elas não terem sido produzidas por mãos humanas e o fato de que este seja, há mais de 5.000 anos, o critério para definir o que é arte; 2) o fato de elas não poderem ser consideradas belas; 3) o fato de não poderem ser criticadas, pois não haveria critério para avaliar algo que ninguém fez.
Em primeiro lugar, o argumento de que a arte tenha sido feita de uma certa maneira há muito tempo não define o que é arte. O ser humano trabalhou durante séculos como artesão dos produtos que consumia e, na atualidade, mal coloca a mão sobre esses produtos. Isso não muda o termo "trabalho" para ambas as intervenções: artesanal ou eletrônica.
Seguindo por esse raciocínio, os urubus de Nuno Ramos podem igualmente ser chamados de arte. E, mesmo assim, também neles houve intervenção humana: na concepção, na montagem, na relação espacial que se criou pelo contraste entre os urubus e o prédio de Niemeyer, no poema emitido pelas caixas de som e no estranhamento causado pela presença horrífica em um lugar em que se supõe encontrar somente o "belo".
Poemas de Carlos Drummond de Andrade se baseiam em bulas e verbetes de lista telefônica: onde está a mão humana? No efeito combinatório (o que não é pouco). O mesmo se aplica a Marcel Duchamp, a Marina Abramovic e tantos outros.
Gullar cita a ausência do "belo" para desqualificar os urubus. Ora, um dos méritos da arte moderna e contemporânea foi relativizar e ampliar a ideia de belo. Platão já questionava como era possível, para um escultor, esculpir belamente um homem feio. Seriam belas esculturas.
Por que não posso considerar que algo emocionante ou estranho também seja tido como arte? E por que não posso chamar de belo aquilo que me faz revisitar o conceito do que seja belo?
Afinal, Van Gogh foi considerado feio em seu tempo, assim como o próprio Picasso, citado por Gullar sob a rubrica de "cubistas".
Finalmente, não é verdade que não possa haver crítica de arte sobre o trabalho de Nuno Ramos, tanto que houve, assim como as há relativas a várias obras conceituais, minimalistas etc., que tampouco exigem o trabalho direto da mão humana.
Finalmente, não é verdade que não possa haver crítica de arte sobre o trabalho de Nuno Ramos, tanto que houve, assim como as há relativas a várias obras conceituais, minimalistas etc., que tampouco exigem o trabalho direto da mão humana.
Eu mesma escrevi sobre uma obra de Tatiana Blass: um carro semienterrado numa calçada de rua. Escrevi sobre o efeito de estranhamento, sobre a intervenção estético-crítica e sobre a "beleza" inesperada desse entortamento do banal.
Muito me estranha que alguém que tenha escrito sobre o apodrecimento e sobre a morte não entenda o papel do assim chamado "feio" na arte. É certo que foi o próprio poeta que produziu esses poemas. Mas que se pense no "Poema Tirado de uma Notícia de Jornal", de Manuel Bandeira. A arte existe justamente porque a vida não basta (como já dizia Fernando Pessoa) e essas obras não negam a arte, mas a reafirmam, problematizam e ampliam a dimensão da própria vida.
NOEMI JAFFE, 51, é escritora e doutora em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo
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